O Banquete de Platão e a gênese da noção de tradição

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Elsa Buadas

Resumo

O que aqui se apresenta como artigo corresponde a um capítulo da minha tese de doutorado intitulada “Metafísica como Onto-teo-logia: uma interpretação da filosofia de Platão à luz do pensamento de Martin Heidegger”, capítulo dedicado ao Banquete de Platão onde, segundo meu entender, dá-se a gênese do conceito de tradição: a ideia da salvaguarda daquilo que deve ser lembrado e legado à posteridade, salvaguarda que desenhará um fio condutor, religando cada geração presente às gerações futuras.


Depois de uma exposição das duas participações socráticas no Banquete –o diálogo Sócrates/Agatão e o diálogo Sócrates/Diotima--, o texto passa a uma análise comparativa da compreensão de eros neste diálogo e no diálogo Fedro. O ponto de partida desta comparação é a constatação de uma radical diferença entre ambos: enquanto no diálogo Fedro se defende enfaticamente a doutrina da imortalidade da alma, no Banquete não há traços desta doutrina, uma vez que ali os homens são reconhecidos, ao igual que em toda a tradição mito-poética grega, como sendo “os mortais”. Esta radical diferença, no meu entender, esboça  dois projetos civilizatórios diferentes, projetos que, em seus traços mais gerais antecipam as duas grandes constelações da tradição ocidental: a metafísica clássica realizada como teologia cristã de um lado, e a metafísica moderna com sua noção de progresso secular que desembocará na vontade de poder nietzscheana, compreendida como “vontade de vontade”, de outro. O primeiro projeto antecipa a noção de paraíso na promessa de uma vida eterna bem-aventurada no convívio com os deuses, cujas parelhas aladas partilhariam com as das almas humanas um perpétuo alimento do pasto do inteligível, convívio somente alcançado se a alma individual for bem sucedida na contenção dos apetites que a desviam do caminho ascendente em direção aos confins do visível onde, na vizinhança do inteligível,  os deuses habitam. Já, o segundo projeto promete apenas a fama imortal garantida pela produção de obras (os “filhos espirituais procriados na beleza”) que, por terem sido geradas à luz desse mesmo inteligível, perdurariam através dos tempos na memória das gerações vindouras--em lançadas futuras cujo maior ou menor alcance dependeria da proximidade com o belo que as gerou—e que, pelo fato de assim perdurarem, levariam consigo, nessa lançada futura, o nome de seus pais/autores. Solidariamente com cada um destes dois projetos se dá a compreensão de eros. Se no Fedro, eros é um deus que anima tanto as almas humanas quanto as divinas e que aspira a conduzi-las a uma vida na proximidade do inteligível onde, num convívio amoroso, o alimento divino das parelhas aladas é garantido, no segundo caso, ele perde o seu caráter de deus, ganhando um estatuto intermediário entre o mortal e o divino (eros como daimon), justamente por ser compreendido como élan em direção ao belo e o bom de que carece. Formula-se, assim, o conhecido modelo de eros como marcado pela falta que, graças a sua astúcia conhece aquilo que lhe falta, mas por sua indigência é obrigado a estar sempre carente e a caminho de seu objeto, uma vez que a conquista do mesmo implicaria o imediato fim da aspiração desejante que o caracteriza. No contexto moderno que, nos parece, o Banquete prefigura, eros se verá obrigado a transmutar-se em “desejo de desejo”, onde o objeto opera apenas como uma condição para a sua manutenção e incremento pois, a rigor, o desejo quer a si próprio (Nietzsche e a vontade de poder como “querer querer”). Uma terceira diferença decisiva se dá entre os dois modelos: a mudança da compreensão do divino. Se no primeiro modelo, eros habita a alma dos deuses que ainda guardam algo da capacidade de admirar-se pelos feitos dos mortais característica da compreensão mito-poética, no segundo a divindade torna-se autossuficiente e como “de costas” para os mortais porque, por ser bela e boa é feliz, sem nada lhe faltar, indiferente à saga humana, antecipando assim o “abandono dos deuses” do  poema O Adeus de Hölderlin que reza: “desde que o medo informe e enraizado separou os homens dos deuses, deve, expiando-o com seu sangue, morrer o coração dos amantes”.

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